sábado, 20 de dezembro de 2014

LIVRO FIO DE CRISTAL - PIO XII, JOÃO XXIII, PAULO VI E EU



Quanta pretensão! Mas não é imaginação.
É uma história curiosa e verdadeira.
Quando criança, fui um menino metido e com certas ousadias. Ao contrário da minha adolescência quando, por motivos emocionais diversos, tornei-me fechado, tímido e, acomodado no meu silêncio, fui considerado pouco amigável.
Por volta dos dez anos de idade, em 1954, ingressei, como aluno externo, no Liceu Coração de Jesus, da ordem dos padres salesianos, em São Paulo. Ali, iniciei novas amizades, gostei dos professores e dos padres mais simpáticos. Fui escolhido para ser coroinha e passei a ajudar as missas.
O grande edifício da escola era, também, sede da reitoria salesiana para o sul do Brasil. O Reitor ali morava e, pela sua função, recebia muitos outros padres, bispos e arcebispos, da mesma ordem.
Por isso, como coroinha, participei de diversos eventos como missas solenes, ordenação de padres, sagração de bispos e essa convivência entre fausto, músicas sacras, incensos e, também, a vida saudável e metódica que os padres levavam, me fizeram, nos meus onze anos, desejar ser padre. Conversando com o nosso diretor espiritual fiz um comentário, mas de maneira ainda incerta. Questionado sobre minha família, informei que meus pais eram separados, e ele, lamentando, disse que a ordem salesiana não aceitava aspirantes a padres que tivessem pais desquitados. Fiquei bastante abatido, porque, na minha ingenuidade, queria ter o mesmo tipo de vida.
Hoje, reconheço que minha vocação era ficar naquele bom local, sem imaginar que pudesse ser mandado para qualquer lugar do mundo, como missionário salesiano e que, bem no íntimo, o que eu queria mesmo, era ser bispo ou muito mais. Na época, tinha uma fé verdadeira, mas o que me motivava era aquele tipo de vida calma.

Como já disse, além de metido eu era ousado.
Não me conformando com essa exclusão, escrevi uma carta para o Papa Pio XII, no Vaticano, explicando minha situação e pedindo interferência a meu favor, junto ao Superior Geral da Ordem, em Turim, na Itália.
Na época eu colecionava selos, moedas e autógrafos.
No mesmo pedido, solicitei também um autógrafo manuscrito do Papa Pio XII. Fiquei imaginando o sucesso que seria para a minha incipiente coleção, que continha autógrafos de alguns políticos, artistas, bispos e arcebispos. Meses depois, recebi em casa, um envelope, com papel grosso e telado, tendo as armas e selos do Vaticano. Abri com a sofreguidão natural, mas me decepcionei logo após, por ver que continha benção papal e retrato autografado, mas impressos. Não eram originais. De qualquer maneira, essa carta serviu para saber que a minha tinha sido recebida. Quanto à questão de poder ser padre salesiano, nada fiquei sabendo. Pouco depois, fui chamado pelo padre Reitor, que esclareceu que o Vaticano tinha entrado em contato com a Ordem Superior Salesiana e recebeu a resposta que não poderia ser aberta qualquer exceção que fosse contra as determinações de Dom Bosco, o santo fundador da Ordem, no século 19.
A informação do Vaticano foi enviada ao arcebispado de São Paulo e transmitida ao Colégio por um secretário do cardeal-arcebispo Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta.
Não podendo ser padre salesiano, resolvi ser um padre não ligado às ordens religiosas específicas. Fora delas, um filho de pais separados não era impedido de ser padre, mas também não era muito desejável, ante o rígido moralismo da formação familiar, na Igreja Católica.
Depois de muito pensar, resolvi procurar o Cardeal Motta, no palácio cardinalício, que situava-se na rua Pio XII.
Devo recordar que minha idade era onze, ou talvez, doze anos, minha audácia não tinha discernimento e aparentava uns quatro anos a menos.
O Palácio tinha um grande pórtico, com portões enormes, (que ainda hoje lá estão, apesar de a casa ter sido demolida nos anos 80, para a construção de cinco torres de prédios, espalhadas pelo imenso jardim que a propriedade possuía).
Pequeno como era, para alcançar a campainha tive que escalar o portão. Atendeu um senhor e eu disse, normalmente, que queria falar com o cardeal.
Ele sorriu, falou que o Cardeal só recebia com audiência marcada e perguntou o que eu poderia querer com ele. Nesse momento, um padre entrou pelo portão, indagando curioso o que se passava. Deve ter achado tremenda graça, porque me fez entrar e aguardar numa ante sala, toda envidraçada, onde se avistava parte do jardim.
Só depois de conhecer o Palácio todo, bem mais tarde, é que percebi que aquela ante sala era a de espera para ser recebido no salão de audiência, através de uma porta maior, ao lado. Enquanto esperava, ouvia uma tosse constante que vinha dali.
Quando o padre voltou, expliquei o caso com detalhes. Ele me olhava como a uma raridade e foi comunicar ao Cardeal.
A grande porta foi aberta, eu entrei e quem estava tossindo, ao lado, era o próprio cardeal, que estava, sozinho, lendo sossegado.
Quando Sua Eminência viu um toquinho de gente querendo conversar, deve ter ficado muito curioso e me ouviu. Depois da minha fala, respondeu que lembrava da carta do Vaticano (que já estava arquivada na Cúria Metropolitana), fez inúmeras perguntas sobre minha família, idade, estudos e outras. Quando esgotei as informações, perguntou se eu estava com fome. Tinha tocado uma sineta, eram quatro horas da tarde, horário em que fazia um lanche. Eu o segui por vários corredores, espiando todos os ambientes, até uma enorme sala de refeições, com mesa para 24 pessoas. (Contei o número de cadeiras). Ali já estavam outros padres aguardando. Após ligeira oração, sentamos todos, fomos servidos por freiras, com um lanche bastante frugal. Fiquei numa ponta, sob os olhares intrigados de todos, até das freiras. Terminado o lanche, voltamos para o primeiro salão e perguntado sobre a sinceridade da minha vocação, falei que queria segui-la. Ele disse que não haveria obstáculos e sai de lá como se estivesse nas nuvens. Quando contei em casa, demorou para acreditarem.
Na década de 50, um Cardeal tinha um grande poder, não só religioso, mas também político e o nosso Cardeal era considerado muito austero, sisudo, um pouco distante e de difíceis audiências.
Através dos posteriores encontros, tomei conhecimento da pessoa extremamente culta, não apenas em assuntos religiosos, mas históricos, políticos e artísticos. E também, apesar de toda a autoridade e pompa de direito, o ser humano sincero, simples e generoso que era, como só os grandes fidalgos sabem ser. (Aliás, era bisneto do Visconde de Caetés, neto de desembargador e de influentes políticos mineiros).
Depois desse primeiro dia voltei uma outra vez para pedir um autógrafo para o meu livro, no qual ele escreveu um pensamento muito bonito.
A partir daí tornei-me presença conhecida, voltando inúmeras vezes. Nem sempre o Cardeal podia me receber, é claro, mas quando estava desocupado de algum assunto ou da presença de políticos que o visitavam como governadores, senadores, bispos e arcebispos, ele me acolhia e íamos para o lanche costumeiro. Falávamos sobre diferentes assuntos, principalmente os políticos e religiosos em voga: Comunismo, União Ecumênica das Igrejas Cristãs (na qual ele não abria mão da liderança papal, caso acontecesse) e política brasileira. Talvez, a raridade, tão inusitada, de discutir esses temas com uma criança (que sabia o que falava, graças à leitura diária do jornal O Estado de São Paulo, que meu avô assinava) tenha sido um dos motivos de ser tão bem aceito.
Algumas vezes, fui apresentado a pessoas importantes como o núncio apostólico Dom Armando Lombardi, embaixador do Papa no Brasil, e que, mais tarde, se tornaria um dos mais importantes cardeais administrativos do Vaticano; o Cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, com a mais bela pronúncia da língua portuguesa que já ouvi; e o Cardeal Montini, famoso arcebispo de Milão que, pela grande obra assistencial, era muito bem-conceituado para ser um futuro Papa. Recordo, perfeitamente, a amabilidade com a qual se dirigiu a mim, perguntando a idade, a escolaridade e até se eu gostava de futebol. Isso aconteceu em 1960, quando veio, como convidado, conhecer Brasília e o Brasil tinha se tornado campeão mundial desse esporte, em 1958.
Embora tenha visto, de longe, e, às vezes de perto, grandes personalidades internacionais, em visita a São Paulo, como o presidente norte-americano Eisenhower, o general De Gaulle, a Rainha Elisabeth e outras; a mais importante com a qual troquei algumas palavras, em toda a minha vida, foi esse gentil Cardeal, que viria a ser o futuro Papa Paulo VI.
Mas estou adiantando muito os acontecimentos.
Depois de ter incomodado o Papa Pio XII com meus problemas e pedido de autógrafo, incomodei mais um, o seguinte.
Em 1958, Pio XII faleceu. O Cardeal Motta devia ir para o Conclave no Vaticano e em dias anteriores, solicitei, com a total falta de bom senso costumeira, se podia me trazer um autógrafo do novo papa eleito.
Na volta do conclave, ele mandou me chamar e entregou um cartão postal com o retrato de João XXIII, o novo Papa, com o tão almejado autógrafo. Não é preciso dizer que fui até o Céu e voltei. Agradeci imensamente e conversamos o que era permitido sobre o Conclave, em razão da minha curiosidade insaciável. Comentou que o Papa na hora de escrever o cartão, começou a assinar o nome como cardeal iniciando a forma de um A, mas depois, por cima colocou o J de João XXIII, dizendo, rindo, que como era uma das primeiras assinaturas, ainda não tinha se habituado.
(Os cardeais assinam o prenome depois cardeal e o sobrenome, ou seja o Cardeal Motta assinava Carlos Carmelo cardeal Motta. Assim também João XXIII que, como cardeal assinava Ângelo cardeal Roncalli).
Quando, no Liceu, mostrei o autógrafo para padres e colegas, muitos duvidaram. Contei para o Cardeal que o autenticou, de próprio punho, junto ao do Papa, num espaço livre, e colocou a chancela oficial, com o seu brasão.
A chancela era redonda e feita por um aparelho mecânico, que pressionava o papel, em alto e baixo relevo, sem qualquer tinta. Quando voltou, nós olhamos a frente do cartão, e ele disse: - Meu Deus, chancelamos bem em cima do rosto do Papa.
Mas não prejudicou em nada e até hoje lembro isso com carinho.
Como ainda não tinha sido crismado, e, cada vez mais íntimo, convidei o Cardeal para ser meu padrinho. Ele aceitou prontamente e, na presença de meu avô, meu pai e tias (minha mãe não pode ir) me crismou, numa capelinha incrivelmente bonita que havia dentro do Palácio, aonde rezava a missa diária.
Sinto lembrar que tudo isso tenha sido demolido, porque o Cardeal Arns, com sua grande modéstia, quando substituiu o Cardeal Motta, achou que não devia morar em tanto luxo e vendeu o Palácio.

Por motivos familiares, mudei para a cidade de Sorocaba e passei a visitar bem menos o Cardeal.
Ele, por sua vez, em 1958, cansado de governar religiosamente uma cidade tão grande como São Paulo (embora tivesse bispos auxiliares), desejava se transferir para Aparecida do Norte. 

Sendo grande empreendedor  (terminou a construção, muitos anos parada, da catedral de São Paulo, criou a PUC -Pontifícia Universidade Católica, organizou o Congresso Eucarístico de São Paulo, o Movimento Juvenil Católico, o novo Seminário Diocesano, o Orfanato Pio XII e muitas igrejas),  iniciou as obras de uma grande basílica em Aparecida do Norte, dedicada a Padroeira do Brasil, substituindo a igreja menor que já não abrigava o número de romeiros. Pediu seu desligamento de São Paulo, ao Papa Paulo VI em 1963, quando a construção do enorme templo estava quase pronta.
Há aqui um erro histórico cometido pelos jornais, no ano seguinte. Todo Cardeal tinha influência política, como comentei. Isso era inevitável, pela grande força da Igreja Católica. O Cardeal Motta era amigo pessoal do Presidente Juscelino Kubitschek. Foi quem rezou a primeira missa em Brasília, antes de inaugurada; foi quem autorizou que a igreja tão moderna da Pampulha, construção do Oscar Niemayer e decoração de Cândido Portinari, fosse consagrada, quando o político Juscelino ainda era prefeito de Belo Horizonte. (O arcebispo local se recusava a consagrar como igreja, uma arquitetura tão arrojada). Foi quem, veladamente, deu apoio a sua eleição como presidente.
Ao término do mandato de Juscelino, em 1960, foi eleito o político Jânio Quadros, que renunciou. Ocupou seu lugar o vice- presidente João Goulart e sucederam-se os fatos históricos tão conhecidos por todos, com o golpe militar de 1964 iniciando a nefasta ditadura.
Por essa ocasião, saiu a transferência do Cardeal Motta para Aparecida do Norte, requerida antes das mudanças políticas.

Como ele era amigo do ex-presidente Juscelino, mal visto pelos militares, os jornais noticiaram que o Cardeal tinha sido transferido para Aparecida, a pedido da ditadura, como que exilado a uma cidade menor, para que não exercesse nenhuma influência política. A despeito de todos as barbáries, torturas, assassinatos e péssima condição econômica do país, que causaram, esse, talvez, seja o único caso (bastante pequeno) no qual os militares não interferiram.


Mudei para Sorocaba, como comentei, e o Cardeal mudou para Aparecida do Norte. Apesar de alguns cartões e troca de gentilezas,
via-o muito pouco, até porque, aos 15 anos, desistindo de ser padre, sentia enorme vergonha de ter incomodado tantas autoridades. Mas era preciso enfrentar a situação. Cheguei a conversar, na última visita, que minha vocação tinha diminuído. Ele perguntou o que eu gostaria de ser e respondi que talvez fosse advogado, como meu avô. Desejou sucesso, dizendo que eu poderia ser um bom católico em qualquer profissão e quem sabe me tornasse um advogado defensor da Igreja.
Não me tornei advogado, nem um bom católico. Por ver tanta maldade no mundo, hoje até duvido da existência de Deus. Formei-me jornalista, especializado em assuntos culturais. Tive relativo sucesso na profissão, mais por conta das oportunidades do que pela minha tenacidade. Escrevi textos, reportagens e livros. E assim continuo. 
Hoje, tantos anos depois, o que mais me espanta, e me dá certa culpa é como uma criança insignificante como eu, tenha perturbado tantas autoridades religiosas da maior proeminência da época. E no fim, para nada.
O que me admira também é, na audiência, no Vaticano, em 1958, com o novo papa João XXIII, ocasião na qual todo Cardeal tem um primeiro encontro para se apresentar e falar de problemas da sua arqui-diocese e de seu país, o Cardeal Motta, nesse momento

solene e importante, tenha lembrado-se de mim e pedido ao Papa, o autógrafo que tanto desejei.
Me comove essa consideração, que acho imerecida (embora guarde o autógrafo como grande preciosidade) por não ter seguido a carreira que pensava querer. Mas, enfim, também não podia fingir o que já não sentia.

Nunca mais nos encontramos. Hoje, guardo, saudoso e muito honrado, todas essas  incomuns lembranças.
A última vez que estive em Campos do Jordão, já há algum tempo, desci até Aparecida do Norte e visitei, agradecido, o seu túmulo, no Seminário Marista, da cidade.

Na imensa basílica, fiquei feliz em ver a homenagem a ele prestada, num bronze com sua efígie e dizeres, por ter sido o criador do Santuário.

 
EDGARD RIBEIRO DE AMORIM - MTB 16.893

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